sábado, 9 de março de 2013

Peregrinação de Alice. Parte I.

O chamado da libélula.


             A cortina branca fina cedia às rajadas do vento, mostrando rosto e forma, cortejando o sopro frente às janelas escancaradas Alice contornava os traços vis da madrugada chuvosa, sentia o coração acelerado. Os golpes da chuva invadiam o cômodo e chocavam-se no corpo febril e na mente agora ensandecida, a água havia se espalhado por quase todo chão, molhando o tapete e pontas das cobertas, Alice sentia o líquido gelado rasgar o esírito inconformado, um grito histérico. Trinta e nove graus marcava o termômetro de mercúrio, ela coçava a testa, num gesto confuso, apertando o olho esquerdo em pura expressão de impaciência. Deixou a janela aberta e não se importando com a poça d'água, retirou as vestes e entrou no box, girando rapidamente o registro do chuveiro, deixando cair sobre os ombros a ducha intensa. Alice imaginou que a água podia tirar de si aquele sentimento impertinente, que levaria seus problemas embora... idealizou os outros caminhos por instantes, caminhos aqueles que não tomou.

            Terminado o banho Alice secou brevemente o corpo, deixando a pele úmida, enrolou a toalha nos longos cabelos castanhos, dirigiu-se até a cozinha. Meio copo de leite, trinta segundos no microondas, retira antes disso, depois de balançar o copo fazendo o líquido girar, toma em pequenos goles e retorna ao quarto. Depara-se com o espelho e olha para si, critica os contornos e aproxima-se de seu reflexo, retirando a toalha dos cabelos os desembaraça com as mãos, analisando seus olhos bem de perto. Respira profundamente e deita-se na cama, de bruços, colocando o travesseiro sobre a cabeça, sentindo o frio do quarto invadido pela noite chuvosa.
  
             São cinco e meia da manhã de sábado, cansada de estar na cama, Alice vai até a cozinha e liga a cafeteira, ligando também o computador, colocado no canto da sala pequena, estrategicamente próximo da cafeteira. Lava o rosto reparando suas olheiras. Segue o cheiro do café, enchendo a chícara pela metade e lembrando-se da conversa havida com Hermés, envia-lhe um email:

Sobre nós.
Todos meus atrasos foram sinceramente, atrasos. Um ou outro fiz por querer, todos os outros, o fiz sem pensar. Errei, nada que eu tivesse desejado ou planejado. Não te prometi o futuro, te dei meu coração agora. Se pedi não desculpas foi porque não me arrependi. O passado trouxe lições que esqueci, os pesares, eles todos eu queimei, tenho recordações, não vivo delas. Meu espírito é livre. Encaro a sorte, não o arbítrio alheio, sigo o caminho e não outros passos. Diante de grades, quero o liberdade de voar.
 
Enviado por Alice às 05:42 hs em 20/02/2008

          Olhando fotos antigas da família, o telefone toca e ela desconecta o fio sem curiosidade. Relê a mensagem, e envia, ciente da discussão que tais palavras irão causar. Prepara-se para uma caminhada pelas ruas úmidas solitárias, colocando o jeans e all star azul, vai ao encontro do amanhacer. Via-se a lua e algumas estrelas, inda era escuro e as luzes dos postes brilhavam na água da chuva empoçada no chão. Os pássaros inauguravam a manhã, chamando a luz do sol num ritual quase místico, voavam de um lado a outro, empoleirando-se nos fios de luz.

          Seguia pela calçada sozinha, e sentou num dos bancos do parque bem em frente à lagoa, e olhando o reflexo do céu na água Alice deixou seus pensamentos se deleitarem na paisagem, relaxando o corpo, adormeceu brevemente. Sonhou estar na mesa de um pub com duas pessoas que não reconheceu, mas sentia serem velhos amigos, foi tomada pelo riso, não sabendo discernir exatamente o que estava sendo dito. Tudo aconteceu rapidamente, no liame entre o acordar e dormir, sentiu uma grande luz se dirigir a si, então ouviu: Alice! Alice!

         Abriu rapidamente os olhos, vendo diante de si uma libélula estática  agitando suas asas rapitamente, teve a imediata sensação de que estava sendo fitada por ela, ouvia o barulhinho de suas asas, sentiu-se hipnotizada, Alice foi levantando as mãos vagarosamente pensando em pegá-la, quando então a libélula se aproximou ainda mais de seus olhos por mais alguns segundos e se foi.